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A Terceira Margem (Ruy Luduvice)

Por um lado, figuras humanas e paisagens reconhecíveis, sobretudo comuns à vida das pequenas e médias cidades brasileiras, e o emprego de técnica dificilmente não experimentada pelo público em algum momento de suas vidas: lápis sobre papel. Por outro, sobreposições e justaposições insólitas, algo fantasiosas, como que nascidas de um estado de consciência entre o sonho e a vigília. Nelas, alguns elementos parecem faltantes e incompletos, já outros excessivos, deslocados, inadequados. Os trabalhos de Henrique de França podem ser considerados estranhos, no sentido psicanalítico do termo, ao se apresentarem simultaneamente inquietantes e familiares.

Esses pares de opostos se contrapõem em jogo que constrói os desenhos e nos convida para a região almejada pelo artista, a terceira margem, famosa e poderosa metáfora-conceito do universo de Guimarães Rosa, lugar por excelência da nossa condição humana fadada a buscar residência fixa em solo de fluxo constante. Se o personagem do conto de Rosa, abandonando família e vida social, opta por mudar-se para uma canoa na posição mediana entre as marginais do rio do seu vilarejo, França nos leva para as fronteiras entre cheio e vazio, sentido e não-sentido, normalidade e espanto pois, afinal, em realidade aqui estamos, por mais que tentemos nos utilizar de subterfúgios que camuflem o estranhamento inerente à vida, sentimento primo-irmão de nossa angústia congênita.

As margens tratadas aqui são também as das superfícies de papel. Embora impressione a capacidade de Henrique em obter efeito de real, sua desenvoltura e naturalidade na estruturação da cena com pontos de fuga, escorços, claro-escuro, volumetria etc., é o agenciamento das regiões em branco que assombra. O que não está desenhado, de fato, perturba a estabilidade de cenários e personagens conferindo-lhes um inacabamento definitivo, flagrando momentos interrompidos de ação ou meditação, e fazendo operar o negativo do não-dito e do não-feito. São essas margens que estabelecem planos, contra-planos e enquadramentos que aproximam situações díspares com coerência desconcertante, dando um tratamento cinematográfico que nos remete aos primórdios desta linguagem, aos momentos de espanto de nossos antepassados frente às lanternas mágicas e suas projeções fantasmagóricas.

Neste aspecto, alguns dados processuais do artista são iluminadores. Vasculhando arquivos fotográficos pessoais e de terceiros anônimos, França garimpa rolos de negativos, fotos reveladas, blogs e páginas online, selecionando imagens posteriormente cortadas e misturadas a outras, orquestrando cenas fictícias, ainda que originalmente carregadas de vivências pessoais e afetivas. Vemos, então, uma investigação da memória iconográfica tanto individual quanto coletiva, nas quais as esferas sociais e íntimas se atravessam mutuamente. Encanta a polissemia e a mobilização das extensões multimídia mencionadas - a fotografia, o cinema, a web art - mobilizadas nos desenhos, pois organicamente mostram seu lugar como linguagem artística contemporânea.

Presente em todos os trabalhos em exibição, direta ou indiretamente, a água é metáfora e dado matérico. Implacável, invade todos os cantos e espaços, infiltrando-se de modo insuspeito, índice de mudança permanente e de mistério. É também o grafite que faz vibrar as fibras do papel em luzes e sombras.

É uma experiência poderosa encontrar uma elaboração vagarosa e densa de preocupações estéticas, poéticas e técnicas em obras tão sofisticadas quanto simples e bem resolvidas em seus mecanismos internos.

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